sexta-feira, 13 de julho de 2007

Desafios e Horizontes – Parte 5/6

Euclides André Mance
Março de 2007

Frente ao exposto até aqui, alguns analistas levantam questionamentos importantes:

- De que forma as redes de Economia Solidária se relacionam com o seu exterior, isto é, com a economia não-solidária? As relações externas são definidas por uma perspectiva não-solidária? E, portanto, a relação da Economia Solidária com o resto da economia é uma relação de competição? Se sim for, qual é a perspectiva dessa competição, e como pode a Economia Solidária 'vencê-la'?

- O que distingue, ou como distinguir, a perspectiva da Economia Solidária de uma defesa de formas locais de capitalismo? Ela se resumiria ao compromisso com o bem-estar (entendido como geração de trabalho e renda, como proteção ambiental etc.) local? Mas até que ponto esse compromisso não é igualmente possível num capitalismo local, 'de pequena escala'? E como garantir que a expansão das redes de Economia Solidária não implique numa perda dos seus valores iniciais? E, em geral (o que se relaciona com a primeira pergunta), quais são as formas que as redes possuem de garantir que não haja desvios de seus princípios? E não seria possível que as próprias necessidades de geração de emprego e renda gerem estes desvios?

- Como se movimenta a economia solidária no horizonte da América Latina e como estão as relações entre organizações latino-americanas nesse setor?

Um copo meio cheio é igualmente um copo meio vazio. As redes de economia solidária se relacionam com o seu exterior e com o seu interior. Quanto mais o seu interior se expande, diversifica e se aprimora, menos necessidades têm de relacionar-se com atores econômicos não-solidários. A lógica é substituir as relações com fornecedores e distribuidores externos não-solidários por relações com atores solidários que se integrem às redes de economia solidária ou que já surjam a partir da própria capacidade de investimento dessas redes colaborativas. Mas mesmo em se tratando dos relacionamentos com atores não-solidários, as iniciativas de economia solidária lutam por preservar os seus próprios princípios e valores, selecionando os fornecedores e distribuidores menos ruins, do ponto de vista ecológico e social. Para alguns, a organização de redes colaborativas é a melhor estratégia para enfrentar fortes processos de competição e assegurar a sustentabilidade e vitória das iniciativas de economia solidária frente às demais. Vendo por esse prisma, o crescimento das redes de economia solidária é um processo de acirramento da competição de mercado com a progressiva derrota dos atores não-solidários. Olhando por outro prisma, o crescimento
das redes de economia solidária é afirmação de uma outra economia, baseada na colaboração e não na competição. Nessa ótica, o foco não é montar estratégias para fazer ruir ou quebrar os atores não-solidários, mas para multiplicar de tal modo os atores solidários que a reorganização das cadeias produtivas possibilite expandir uma economia ecologicamente sustentável e socialmente justa, abolindo toda forma de exploração humana e degradação ambiental que, em níveis diversos, são típicas do modo capitalista hegemônico e de seus mercados. A força desse movimento está em construir uma nova economia. A expansão dessa nova economia terá como conseqüência o enfraquecimento continuado da economia capitalista, em favor do bem-viver das pessoas, dos povos e do reequilíbrio dinâmico dos ecossistemas.

Cabe, portanto, salientar que a economia solidária não se confunde com o modo capitalista de produção. Ocorre que algumas pessoas confundem economia solidária com desenvolvimento local. E uma vez que pode haver desenvolvimento local na perspectiva capitalista, imaginam que a economia solidária se resumiria a uma espécie de capitalismo local, com fluxos econômicos mais preservados frente aos fluxos globais, comprometendo-se com a manutenção do bem-estar das comunidades locais, particularmente pela manutenção de postos de trabalho e renda naquele território e pela proteção de seus ecossistemas – na medida em que consegue ajustar os fluxos de fornecimento, produção, comercialização, financiamento e consumo em laços de realimentação dentro daquele território. Experiências de desenvolvimento local sob a lógica capitalista foram bem-sucecidas em certos lugares com significativo aporte dos entes públicos, mas, progressivamente, a lógica de concentração de riqueza típica daquele modelo vai enfraquecendo o dinamismo econômico local. E as linhas de financiamentos que são abertas acabam por beneficiar o enriquecimento de alguns, enquanto as grandes maiorias, e não raro os entes locais, resultam endividados no curto, médio e longo prazos.

Se é um fato que a economia solidária promove o desenvolvimento territorial, o faz sob o paradigma da distribuição de riqueza.
Quanto mais a riqueza é distribuída, praticando-se preços justos (tanto na comercialização de bens e serviços quanto na remuneração do trabalho autogerido) tanto mais o território se fortalece economicamente e aprimora-se o bem-viver de sua população. Mas quem estabelece os preços justos são os próprios atores econômicos solidariamente integrados nessas redes, empreendimentos, produtores e consumidores que, medianamente, se relacionam em cada transação econômica de compra e venda, de financiamento ou com divisão de resultados. Se por um lado a economia solidária se sustenta em um conjunto de valores éticos, por outro lado ela se assenta igualmente sob um conjunto de valores econômicos. Ambos se materializam em práticas concretas, tais como a autogestão, a decisão democrática sobre os resultados da atividade econômica e a remontagem ecológica e solidária de cadeias produtivas. Se todas as decisões importantes sobre o empreendimento são tomadas em assembléia, é quase certo que essa autogestão não resultará na negação da própria democracia que a funda. Que o direito de propor e decidir não irá abolir a liberdade de propor e decidir, por mais que os empreendimentos se multipliquem e as redes cresçam. Se é legítima a pergunta sobre como garantir que a expansão das redes de Economia Solidária não implique numa perda dos seus valores iniciais, por outro lado essa pergunta supõe que esses valores tendem a ser perdidos – cabendo portanto evitar tal perda. Mas a economia solidária somente pode crescer na medida em que seus valores econômicos se expandam. E eles somente podem se expandir se os seus valores éticos são praticados pelos atores que a integram – posto que sem a colaboração solidária entre eles, todos tendem a se enfraquecer, debilitar e falir. Razão pela qual constroem redes colaborativas ao invés de agirem isoladamente. Se é correto supor que uma empresa solidária depois de consolidada economicamente poderia vir a desprezar o setor da economia solidária, por outro lado caberia avaliar em que medida a sua desconexão de todos os fluxos econômicos solidários que a consolidaram e sustentam não a levaria igualmente a falir - posto que as redes colaborativas podem e devem montar novas unidades produtivas para atender às suas próprias necessidades, evitando tornar-se refém de um fornecedor em particular.

Atualmente, entre os principais riscos que a economia solidária enfrenta estão dois: a pouca compreensão que as forças progressistas, democráticas e revolucionárias das sociedades têm a seu respeito e a incursão que as forças capitalistas vem fazendo em torno do conceito de solidariedade, vinculado-o à noção de responsabilidade social. Isso leva ao resultado de que grande parte das forças sociais, mesmo as melhor informadas, imaginem que a economia solidária seja um espécie de capitalismo que leva a sério a responsabilidade social. Esse preconceito, especialmente em meio às forças de esquerda, somado à ofensiva no campo dos valores por setores de direita – pretendendo fazer-se passar por ambientalmente e socialmente responsáveis – leva a economia solidária para um campo de diálogo em que a esquerda lhe pede que apresente justificativas de possibilidade histórica ao invés de centrar o debate na efetividade de sua atual realidade histórica, em que aboliu a contradição entre capital e trabalho, pelo simples fato que os trabalhadores são proprietários dos empreendimentos e decidem democraticamente, autogestionarimente, o que fazer deles. E porque democraticamente colaboram com outros empreendimentos solidários numa relação de complementariedade vantajosa para todos. E assim, enquanto se debate se a economia solidária não perderá os seus valores na medida em que cresça, gigantescas parcelas dos setores sociais progressistas continuam a consumir produtos não-solidários sem se perguntar a fundo sobre a efetividade histórica presente de seu próprio consumo, que realimenta teias econômicas locais e globais do capitalismo. Pois, de fato, não sabem distinguir o que é uma iniciativa de economia solidária e o que é uma empresa capitalista que apregoa a "responsabilidade social" como estratégia de marketing. Por outra parte, atores de economia solidária, buscando apoios públicos, particularmente governamentais, não explicitam o caráter contraditório e revolucionário dessa nova economia, permitindo que sobre ela seja feita uma leitura ambígua, carregando nas tintas de sua característica de responsabilidade social e ambiental – uma vez que para a economia solidária essa responsabilidade não é uma simulação, mas um compromisso verdadeiro.

Mas fato é que na América Latina essa economia avança rapidamente, enfrentando os seus desafios, aprendendo com seus acertos e erros.
Cito apenas um exemplo. Na Argentina, depois de um crescimento gigantesco do número dos grupos de trocas que emitiam moedas sociais locais, alcançando seguramente a mais de dois milhões de participantes – embora alguns levantamentos apontassem de três a cinco milhões – houve um refluxo considerável em razão de problemas metodológicos e organizativos, com denúncias de desvio de finalidades de algumas práticas em escala nacional. A gravidade da situação levou à emergência de uma nova rede nacional de trocas solidárias, aprimorando os instrumentos organizativos e a metodologia de funcionamento. Ocorre que no Brasil, o aprimoramento no emprego das moedas sociais, considerando os acertos e erros cometidos na Argentina e em outros países, levou ao surgimento de bancos comunitários que operam com moedas sociais emitidas na comunidade e de circulação local, porém lastreadas com fundos de micro-crédito solidário. Com base nessa experiência está em curso atualmente na Venezuela a organização de uma rede de bancos comunitários que realizam a emissão de moedas locais. Por sua vez, no México, desenvolveu-se um sistema de intercâmbio em que as moedas sociais não são mais emitidas em papel, mas registradas como créditos eletrônicos em smart cards que permitem realizar operações de intercâmbio através de redes de comunicação de dados. Por sua vez, no Brasil, desenvolveu-se um sistema eletrônico que possibilita a realização de transações tanto com o emprego de moedas locais não lastreadas, que circulam apenas entre os membros de um mesmo grupo de usuários-emissores, quanto de moedas sociais astreadas, como forma de pagamento entre quaisquer usuários do sistema, sem a necessidade de smart cards. Vemos, portanto, que as diversas soluções, os acertos e os erros, são importantes fontes de aprendizado. E que a economia solidária na América Latina, graças aos fluxos de comunicação em redes colaborativas, tem crescido, sabendo aprender com eles.

Por Euclides André Mance - Março de 2007
(Tradução sintética ao Inglês em http://www.turbulence.org.uk/solidarityeconom.html)

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