Euclides André Mance
Março de 2007
O mapeamento oficial feito pelo Governo Federal sobre economia solidária em 2005 alcançou 41% dos municípios brasileiros. Constatou-se que, dos 14.954 empreendimentos econômicos solidários pesquisados, 77% foram criados nos últimos dez anos! Esses empreendimentos operam sob autogestão: os trabalhadores são proprietários das empresas e decidem democraticamente em assembléias tudo o que seja relevante para a empresa, inclusive a destinação dos excedentes. Inexistem as figuras clássicas de patrão ou empregado, a propriedade é coletiva, a gestão compartilhada e atua-se sob princípios solidários.
Esses empreendimentos integravam 1.251.882 trabalhadores ao final de 2005. Sua produção anual, então declarada, era de aproximadamente USD 2,6 bilhões. Esses empreendimentos geraram, de 2000 a 2005, cerca de 628 mil novos postos de trabalho. Foram criados 1.250 empreendimentos a cada ano, ou 104 novos empreendimentos a cada mês.
Em relação aos resultados financeiros, a maioria deles teve sobras ou pagou suas despesas. Somente 16% não haviam pagado as despesas relacionadas ao mês anterior, um número relativamente baixo, comparando-se ao das empresas de mercado em seus níveis de endividamento.
Mas por que em um ambiente econômico tão adverso, frente aos fenômenos da globalização e do neoliberalismo que se propagou nas décadas de 80 e 90, com empresas falindo ou sendo incorporadas pelo grande capital em um momento de abertura dos territórios nacionais ao capital externo, tais empreendimentos solidários proliferaram e se consolidaram? Mais do que isso. Por que diversas empresas capitalistas que faliram e foram, posteriormente, assumidas pelos trabalhadores, que as reergueram sob os princípios da economia solidária, passaram a prosperar, gerando sobras?
A principal hipótese, a meu ver, é que na base desse fenômeno estão processos colaborativos solidários que, tecendo redes socioeconômicas, facilitam a sustentação desses empreendimentos, com a integração de produtores, fornecedores e consumidores, centros universitários, Ongs, , ADRs, sindicatos, organizações eclesiais, governamentais e populares, beneficiando comunidades locais e o conjunto dos envolvidos.
Conforme a pesquisa, cerca de 42% desses empreendimentos participam de alguma rede de economia solidária ou fórum de articulação. Essa integração os fortalece. Nos últimos 12 meses, 5.557 empreendimentos fizeram investimentos que totalizaram USD 91 milhões, principalmente para aquisição e renovação de equipamentos, para infra-estrutura física, ampliação de estoque de matérias-primas, abertura de lojas ou espaços de comercialização e abertura de filiais. Trata-se de investimento de excedentes gerados no próprio circuito da economia solidária ou de recursos captados em financiamentos no setor da economia solidária ou junto a organismos públicos e bancos privados.
As fontes de recursos apontadas para a montagem inicial dos empreendimentos são: os próprios associados (71%), doações (34%), empréstimos e/ou financiamentos (21%). Vemos que as principais fontes de recursos referem-se à solidariedade entre os participantes do empreendimento, que aportam recursos próprios em benefício da iniciativa e/ou de doações recebidas de outras organizações solidárias ou comunidades locais. Igualmente, inúmeras formas de microfinanças solidárias inscrevem-se na terceira principal fonte de recursos para o surgimento desses empreendimentos.
A maior parte da produção destina-se ao comércio local ou comunitário (56%), seguido do comércio municipal (51%), micro-regional (26%), estadual (16%) e nacional (7%). Apenas 2% é destinado para a exportação a outros países. Cabe destacar que os produtos e serviços, em sua maioria, são comercializados utilizando-se a moeda oficial do país. Mas há uma parcela comercializada com moedas locais, emitidas pelas próprias comunidades de bairro ou redes locais, que as aceitam no intercâmbio de produtos e serviços.
Destaque-se que apenas 66% dos empreendimentos apontaram como destino final dos produtos e/ou serviços a sua venda. No caso de 6%, os produtos e serviços são destinados ao autoconsumo de sócios e de suas famílias; no caso de 5%, os produtos e serviços são trocados por outros produtos e serviços, particularmente de outros fornecedores solidários – sendo parte desse intercâmbio feita com o emprego de moedas sociais. Por fim, o destino dos produtos e serviços de 31% dos empreendimentos é, em parte, a sua venda ou troca e, em parte, destinada ao autoconsumo de sócios. Ocorre que quanto mais cresce o volume de intercâmbios no setor da economia solidária, satisfazendo o bem-viver dos participantes, menor é a necessidade de recorrer-se aos produtos e serviços ofertados por empresas capitalistas, não solidárias. Há, entretanto, a necessidade de qualificar-se cada vez mais os produtos e serviços para atender-se às necessidades diferenciadas dos consumidores.
Quanto às matérias-primas utilizadas na produção, a principal fonte continua a ser a aquisição junto a empresas privadas (60%), posto que a economia solidária ainda não conseguiu remontar as cadeias produtivas nos territórios. Mas é expressiva, tratando-se de organizações complexas, como as cooperativas de transformação, a aquisição de insumos junto a associados (28%); ou de outros empreendimentos de economia solidária (6%) ou ainda junto a produtores não-sócios (11%). A doação de insumos corresponde a 18% e a coleta de materiais recicláveis ou matérias-primas para artesanato é a fonte de insumos para 11%. Desse modo, vemos que os empreendimentos que praticam formas solidárias de obtenção de insumos ultrapassam, em quantidade, os que apenas o adquirem junto a empresas privadas no mercado. Isso significa que o crescimento das redes de economia solidária e a ampliação de negócios solidários entre os empreendimentos que as integram fortalece a expansão do setor, ampliando o volume de vendas em seu interior, e que começa haver a remontagem solidária e ecológica das cadeias produtivas nos territórios.
Destaque-se ainda que os empreendimentos de economia solidária, integrados a redes sociais, alimentam suas conexões com movimentos populares, sindicais, comunitários, culturais e fóruns de diversos tipos. Cerca de 60% deles participam de movimentos sociais-populares, outros 58% desenvolvem alguma ação social ou comunitária e 42% participam de redes ou fóruns de economia solidária. Fato é que muitos desses empreendimentos surgiram das lutas desses movimentos ou graças a iniciativas de economia solidária, especialmente de microcrédito. Nada mais natural que uma empresa de confecções, que surgiu por luta e organização local de um movimento de mulheres, mantenha o seu compromisso no apoio às lutas feministas. Ou que uma empresa de beneficiamento de frutas que surgiu da organização do Movimento Sem Terras, após conquistar um assentamento da reforma agrária, continue apoiando a luta dos trabalhadores rurais sem-terra.
Destaque-se também que 44% desses empreendimentos estão na região nordeste do Brasil – que abriga metade da população abaixo da linha de indigência no país. Se, para os excluídos, a economia solidária mostra-se como alternativa real para enfrentar a situação de pobreza, para o conjunto dos trabalhadores revela-se uma opção por outro modo de trabalhar e viver: trabalhar em empresas onde todos são proprietários; em que as principais decisões são tomadas democraticamente em assembléias; em que se pode trabalhar de forma a proteger os ecossistemas e promover o bem-viver pessoal e social.
Por Euclides André Mance - Março de 2007
(Tradução sintética ao Inglês em http://www.turbulence.org.uk/solidarityeconom.html)
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